segunda-feira, 10 de julho de 2006

Crónicas de um mundial de futebol (ou a história de uma mulher desapaixonada) (1) 11 de Junho de 2006, domingo.
A minha prima Hermenegilda é uma mulher desapaixonada, ao ponto de lhe azedar os dias e lhe avinagrar as palavras. Podia cair na tentação de uma explicação fácil: nunca teve o menor bambúrrio de sorte nos amores – já lá vão três divórcios e nunca teve filhos. Mas não o faço, sobretudo, porque ela insiste que “viver sozinha é uma graça de Deus”. Que seja! Isso não seriam contas do meu rosário se ela não me atazanasse sempre que lhe dá na gana. Ora, estava eu a banhos, entre amigos, deleitado a ver o jogo Portugal – Angola, o primeiro deste mundial de futebol, num domingo ao fim do dia, enquanto o sol avermelhava um mar tranquilo que se diluía no fio do horizonte, quando a Hermenegilda me liga e, na sua voz de falsete, implacável, me diz: - “ Pela barulheira já percebi que estás a ver o futebol. Este país está reduzido ao futebol. Não se fala em mais nada, como se não houvesse mais nada importante neste país para se falar.”
Neste momento, Figo quase me descansava com um remate à baliza dos angolanos, depois de três fintas ao seu jeito, que podia ter feito o 2-0. Petit e Tiago estavam a jogar muito recuados e muito perto um do outro, o que cavava um fosso entre meio campo defensivo e o meio campo ofensivo, enquanto Zé Kalanga e Mendonça, pelos angolanos, embora ofensivamente ineficazes, prendiam os laterais portugueses. Com a entrada de Maniche a equipa tinha ganho outra velocidade, mas o 1-0 persistia, enervando-me. “Hermenegilda – respondi, depois de uns segundos de silêncio (que me permitiu admirar um daqueles carrosséis de Cristiano Ronaldo que se desfazem em espuma) – pensei que estavas a ler qualquer coisa, que tinhas ido ao teatro, ao cinema, a um concerto.” Ela sentiu a ironia na minha voz, retorquiu: “Não te faças de sonso. Esta paranóia do futebol serve apenas para distrair este povo pequenino que, alegremente, se afunda todos os dias”. O árbitro apitou, finalmente. Ganhámos 1-0. Soube a pouco, mas ganhámos. Despachei a Hermenegilda, como quem sacode um tapete: “Amanhã ligo-te, agora vou comemorar a vitória de Portugal”. Queria gozar a vitória de Portugal, saborear até à última gota a minha cerveja, imaginar a cara de Miguel de Sousa Tavares e de Pinto da Costa, mas a Hermenegilda não me saía da cabeça: tem um percurso de vida ondulante. Frequentou a faculdade de letras, mas não acabou o curso – dedicou-se ao teatro. Foi sol de pouca dura, mas serviu de desculpa para os insucessos universitários. Nestes anos, de 70 a 74, a política não estava na lista das suas preferências. Mantinha com ela, nessa altura, conversas de horas e horas sobre a necessidade da luta contra a ditadura e a guerra colonial, mas ela não estava para aí virada – chegou ao desplante de, em 1969, furar uma greve universitária, quando os trabalhadores da Carris e da Lisnave enfrentavam a polícia de choque. E agora, quando eu estou a ver o jogo Portugal – Angola, a Hermenegilda – aquela que eu conheço há quase cinquenta anos – vem me dizer que: “ Esta paranóia do futebol serve apenas para distrair este povo pequenino que, alegremente, se afunda todos os dias”. Oh Batista Bastos, onde é que ela estava antes do 25 de Abril?

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