Crónicas de um mundial de futebol
(ou a história de uma mulher desapaixonada) (2)
17 de Junho de 2006, Sábado.
A minha prima Hermenegilda, apesar de estar a roçar os cinquenta anos – diz ela –, ainda é uma mulher apetecível – as mamas fartas, as pernas esguias, o rabo arrebitado, sobretudo quando enverga jeans, e o ar blasé dão-lhe um charme balsaquiano. Até parece, à primeira impressão, pela postura, uma mulher de esquerda. Mas, decididamente, não é! Não é pelo facto de votar sistematicamente no PSD (votou – disse-me – em José Sócrates, não acreditei, mas fiz de conta). É, sobretudo, porque a vida dela está feita num fanico – a sua infelicidade interiorizada como destino é projectada nos demais cidadãos deste país. O resultado é que odeia tudo o que dá felicidades aos outros. Desta vez, o futebol serviu-lhe o queixume. Quem a viu e quem a vê! Depois de Abril de 74, ainda mal refeita dos vertiginosos acontecimentos, adere ao MRPP e toma-se por “mulher do povo” – uma nova padeira de Aljubarrota contra o capitalismo, o imperialismo e o revisionismo. E por aí andou, em devaneio “revolucionário”, dois ou três anos. Mas sempre foi mulher de muita leitura: por esses dias, mesmo citando Mao Tsé Tung a despropósito, descobriu Castoriadis e Edgar Morin, e na literatura o Orwell. Nem sei como, mas também chegou ao Spinoza, enquanto recapitulava os clássicos gregos. Mas mantinha-se ondulante: não sabia se queria fazer teatro, se queria acabar o curso, se ser apenas dona de casa, dependia dos maridos que foi coleccionando. Uma coisa é certa: nunca fez nada na vida que se apalpasse.
Mas, a vida da Hermenegilda não tem, para mim, a menor importância, desde que não me atazane nos momentos importantes da minha vida, como foi aquele momento final do jogo Portugal -Irão. Portugal acabara de ganhar por 2-0. A inclusão de Costinha, Maniche e Deco, ao contrário do primeiro jogo, permitiram a Portugal cobrir mais espaço, e estender mais o seu futebol no relvado, alargando o bloco, facilitando assim as transições e, por outro lado, pressionando mais o último reduto iraniano. O próprio Cristiano Ronaldo incutiu mais velocidade e dinâmica, quer em raides individuais, quer nas tentativas de finalização, constituindo-se como o jogador mais perigoso do ataque português. Figo, desta vez, descansou. Mas tudo lhe é perdoado. Temos 6 pontos e a qualificação à vista. O México ajudou ao empatar com Angola. Scolari, finalmente, começa a desmoronar os seus críticos.
É neste preciso momento – de supremo deleite – que a Hermenegilda, calculista e venenosa, me telefona para me perguntar: “Viste o Marcelo? Mas ele não tem mais nada para fazer? Não é professor universitário? Não tem exames para corrigir. É patético. Simplesmente patético. Até o Marcelo, pobre país!”. Aqui, fazendo um inusitado uso da minha pouca paciência, atalhei num tom conciliatório: “Se detestas futebol porque vês exactamente os canais que passam futebol? Não tens mais 30 ou 40 canais para ver? É só para te exasperares ou há outro motivo?”. Ela, sempre na sua voz de falsete, despachou-me: “ Vê-se bem que não está em Lisboa e não te incomoda a chinfrineira que por aqui vai: gente feia, pobretana, inculta, arvorando bandeiras nacionais parecem orangotangos. Até já vomitaram no meu carro. Este país é uma merda!”. E desligou o telefone, para meu descanso.
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