Há uns anos – para ser preciso, em Agosto de 1990 – participei, na Cidade do México, numa reunião de um comité de cultura ibero-americano. Ao fim do primeiro dia, estava eu em amena cavaqueira com Guillermo Oddo (chileno, antigo membro do grupo musical Quilapayún, um dos mais representativos - quase a par de Vítor Jara - da música popular chilena durante o governo de Allende) a tentar perceber os invios caminhos da democratização no Chile, quando Tertuliano dos Passos – um carioca de gema –, naquela altura presidente da Fundação Rio-Arte, se acercou e, no seu estilo descontraído, disparou: “Vocês não vão jantar no hotel só porque é à borla, pois não?” Fomos jantar num qualquer restaurante descoberto ao acaso, no centro histórico, nas proximidades da Praça da Constituição, onde a minha imaginação ia adivinhando Frida Kahlo a passear-se de braço dado com Diego Rivera. Depois do jantar, Tertuliano quis prolongar a noite: “- Vamos tentar descobrir um sítio interessante para beber uma cerveja”. E fomos, eu e Guilherme Oddo, com ele sempre a comandar as operações. Mandou parar um táxi. Entrámos e ele disse ao taxista num razoável espanhol: - “Leva-nos a um bar que seja frequentado por artistas, por escritores, poetas, pintores. Estás a perceber?”. O taxista, com ar bonacheirão, abanou com a cabeça em sinal afirmativo. Quinze ou vinte minutos depois, o táxi parou à porta de um bar, no Bairro Rosa, cujo nome anunciado em néon por cima da porta não me ocorre. Tocámos à campainha para nos abrirem a porta, enquanto o taxista com simpáticos acenos partia para outras viagens. Um “gorila” vestido de preto abriu-nos a porta. O bar estava à distância de uma imensa escadaria, com dois lances a pique separados por um pequeno patamar. Lá em baixo, antes do acesso definitivo, fomos apalpados. Como não tínhamos armas franquearam-nos a entrada: estávamos numa vulgar “casa de putas”, incomparavelmente pior que qualquer bar do Cais do Sodré nos anos sessenta, e fomos envolvidos numa ténue luz vermelha. Num pequeno estrado, a poucos metros, com ar profissional e trejeitos de corpo, alguém – uma mulher, obviamente – cumpria o ritual de se despir ao som de uma música apropriada. Haviam “raparigas” em todas as mesas, umas sós, outras acompanhadas por “respeitáveis” senhores como nós, que nos lançaram de imediato um olhar de curiosidade. Tertuliano quebrou o silêncio: - “Vamo-nos embora?” – Quase implorou. “Já? Sem beber uma cerveja e conviver com as “artistas?” – Perguntei-lhe, com ironia, deixando-o sem saber o que dizer. Guilherme Oddo anuiu à opção de por ali ficarmos um pouco. Mal nos tínhamos sentado, duas “meninas” aproximaram-se e pediram delicadamente permissão para se sentar. Nesse momento, Tertuliano, com ar sério, a querer salvar a honra do convento, disse-lhes: - “Só se senta quem souber o nome do Presidente da República do México e quem me disser se o governo é de esquerda ou de direita”. Surpresa: uma das jovens, a mais alta, loira, irrepreensivelmente linda, olhou-o com um sorriso trocista e, depois de se sentar, com uma sonoridade na voz a lembrar o Mario Mereno Cantiflas, respondeu-lhe: -“A primeira pergunta é estúpida porque todos os mexicanos sabem que Carlos Salinas é o nosso Presidente. E a segunda não tem resposta certa. Se tu fores de esquerda o nosso governo é de direita; se tu fores de direita o nosso governo é de esquerda. Mas mudemos de assunto que eu não estou aqui para falar de política. Estou aqui para ganhar dinheiro para acabar o meu curso de Direito.” Depois explicou-nos que a sua função era levar-nos a consumir bebidas sobre as quais tinha percentagem. Se algum de nós quisesse ir para a cama com ela (ou com a amiga) era só uma questão de acertar o preço. Neste último caso era o patrão que cobrava percentagem. Esclarecidos sobre o negócio, bebemos duas cervejas cada um, pagámos duas bebidas a cada uma das nossas ocasionais companheiras de mesa e, durante quase meia hora, falamos de literatura (bizarro, mas verdadeiro): a rapariga mais baixa, de cabelo preto como o breu, uma mistura de maia e tolteca, revelou então os seus dotes: conhecia bem o que nós conhecíamos de cor: Octávio Paz e Carlos Fuentes, mas falou de outros escritores mexicanos: Francisco Tario, Jorge López Páez, Laura Esquivel, Rosario Castellanos, entre outros que não me ocorre o nome. Já a subir as escadas empinadas, na galhofa, a comentar a situação, Tertuliano disse: - Como vêm, o taxista não nos enganou.
(*Nos últimos vinte anos fui anotando, nuns cadernos de capa preta, pequenas histórias de viagens. A partir de hoje, de vez em quando, vou partilhando essas memórias, apesar de pensar que estes textos são longos demais para este meio de comunicação. )
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