quinta-feira, 21 de dezembro de 2006

Memórias.

A propósito do post anterior veio-me à memória o Casal Ventoso- um nome bem conhecido, infelizmente, de todos os lisboetas e dizer a quem não conheceu aquele bairro o seguinte: O Casal Ventoso não era como as Telheiras. Nasceu em finais do século XIX, desordenadamente, casa a casa, se assim se pode chamar, uma por cima da outra, numa encosta solarenga do Vale de Alcântara, bordejando a Rua Maria Pia. Com o tempo, vinte ou trinta anos, foi-se estendendo colina abaixo até à ribeira que por ali passava, transformando-se num bairro construído tábua a tábua, nas horas vagas, por gente humilde, homens e mulheres que, sem eira nem beira, afluíram de todos os pontos do país à grande cidade para alimentarem a nossa tardia revolução industrial. E assim viveu, pacato e ignorado, pobre e sem condições de habitabilidade, como bairro operário, de gente trabalhadora e de boa vizinhança, até ao começo dos anos setenta. As características do Casal Ventoso nos anos setenta, nomeadamente a exclusão social dos seus moradores, o desemprego e, sobretudo, o gueto urbanístico – um amontado de barracas sinuosamente empilhadas – facilitaram a transformação do bairro no principal e mais conhecido local de tráfico e consumo de drogas de Lisboa.
E todos os lisboetas sabiam que assim era. E todos os lisboetas se envergonhavam (ou se deviam envergonhar) daquele bairro existir na sua cidade. No início dos anos noventa a situação degradante, humana e urbanística, tinha entretanto piorado substancialmente: os seus habitantes viviam em condições infra-humanas, enquanto milhares e milhares de consumidores de drogas usavam o bairro diariamente para compra de drogas e seu consumo; muitas centenas por lá vegetavam, literalmente, dia e noite, sem amarras familiares nem amigos que lhe estendessem uma mão, agarrados para sempre ao sonho de subirem aos céus; mais de mil famílias, mais de quinhentas crianças e adolescentes, misturavam o seu dia a dia entre a habitação degradada e a envolvência num ambiente dantesco de seringas espetadas, mortes diária por overdoses e negócios ilícitos. Entretanto, a cidade trabalhava, divertia-se e dormia paredes-meias com este pesadelo. Só quem se aventurava bairro adentro, dezenas e dezenas de vezes, como o João Soares e eu próprio, sabe o que é sentir a alma doer. Mais: fica-se com a certeza que palavras como solidariedade e cidadania são para fazer e não para dizer. A partir de 1998 começou-se a desfazer o pesadelo. Deu-se então início à construção de casas dignas para quem vivia no Casal Ventoso, nas proximidades do local para que as pessoas que ali residiam mantivessem os seus laços de familiaridade, de vizinhança e de afectos – a Quinta do Cabrinha, de um e outro lado da Avenida de Ceuta. (Construiu-se no local um centro de apoio aos toxicodependentes, com cama, mesa e roupa lavada, para além de cuidados médicos primários; construiu-se, também ali próximo, na Rua de Cascais, um centro de encaminhamento e recuperação de toxicodependente provenientes do Casal Ventoso; e, também nas proximidades, na Rua Arco de Carvalhão, construiu-se um centro para toxicodependente sem-abrigo, com mais de duzentas camas). Não são palavras lançadas ao vento sem conhecimento, nem sentido. São realidades que dão sentido à palavra solidariedade! Hoje, um novo bairro percorre toda a Avenida de Ceuta. Um novo bairro pensado e construído. Com escola. Com centro de saúde. Com comércio. Com associações desportivas, culturais e sociais. Com vida. Um novo bairro onde os moradores do velho Casal Ventoso sentem que lhes foi restituída a dignidade. Onde sentimos alegria nos olhos de cada criança que salta à corda no pátio amplo e arejado. Onde ouvimos um homem, com sessenta anos, com olhar perdido no sonho, dizer: nasci ali – apontando para a encosta onde existiu o velho bairro – e nunca tive uma casa de banho. Agora tenho e esta é a minha maior felicidade. Quem nunca entrou no antigo Casal Ventoso ou quem é alheio a essa coisa que se chama solidariedade (ou quando esta se restringe a uma árvore de Natal nesta época do ano) pode botar o discurso que quiser, falar mesmo em bairros atravessados por auto-estradas, mas nunca saberá o que é a sensação de felicidade de passar por lá e ver o sorriso de uma criança.

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