quarta-feira, 10 de janeiro de 2007

Diálogos absurdos.
Ali para os lados da Graça, num prédio antigo, um pombalino tardio, num 4º andar sem elevador, de onde se vê o Tejo à medida de uma janela, habita um velho negro, pintor, moçambicano e meu amigo. Há muitos anos. Não quer ser outra coisa na vida senão pintor. E pinta de memória: perfeitos corpos femininos, negros, envoltos em paisagens tropicais paradisíacas. Só a memória pode reproduzir a óleo aqueles corpos e aquelas paisagens. E palmilha diariamente a cidade à procura de compradores para as suas obras. Mas, o meu amigo, para além de um provocador empedernido, é um matreiro: descobriu que, numa sociedade envergonhadamente racista, pode retirar proveitos da cor da pele que a natureza lhe deu. Nas ruas da cidade, sempre que um transeunte abordado recusa a compra de uma das suas telas, ele com ar cândido e os olhos pequeninos a brilharem de gozo, coçando a barba branca, exclama: - você não me compra o meu trabalho porque eu sou preto. Se o interlocutor cai na armadilha, ele alivia a pressão até trocar o quadro por cento e cinquenta ou duzentos euros, consoante as dimensões. Na maioria dos casos a armadilha não pega, e então eleva a voz grossa, lembrando velhos cantores de jazz, e diz: - Você é um racista de merda! A melhor de todas as situações que conheço foi quando lhe cortaram o fornecimento de electricidade em casa por falta de pagamento. E isso já aconteceu dezenas de vezes. Desce empertigado até às imediações do Marquês de Pombal, e aí, nas instalações da EDP, grita a plenos pulmões ao funcionário que o atende: - vocês cortaram-me a luz porque eu sou preto! Quando um dia lhe perguntei: - Rogério, porque fazes essa fita se sabes que não é por seres preto que eles te cortaram a luz, mas porque não pagaste? Ele fixou-me com o olhar entre a incredulidade e a ironia, e respondeu-me: - aprendi com as mulheres que a vida me deu: elas, quando eu lhes apontava qualquer coisa que estavam a fazer mal, respondiam da mesma forma: dizes isso porque sou mulher. E nunca resultou explicar-lhes que era porque estavam a fazer qualquer coisa errado, e não por serem mulheres. Acabava por me calar. Se este argumento funcionava comigo, porque não há-de resultar com os funcionários da EDP? - concluiu. Eu também me calei, enquanto meditava: isto será racismo e misoginia de pernas para o ar?

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