Crónica da derrota do Chelsea.
A minha prima Hermenegilda é uma mulher desapaixonada, ao ponto de lhe azedar os dias e lhe avinagrar as palavras. Podia cair na tentação de uma explicação fácil: nunca teve o menor bambúrrio de sorte nos amores – já lá vão três divórcios e nunca teve filhos. Mas não o faço, sobretudo, porque ela insiste em propalar aos sete ventos que «viver sozinha é uma opção de vida». Que seja! Isso não seriam contas do meu rosário se ela não me atazanasse sempre que lhe dá na gana.
Ora, estava entre amigos, deleitado com a segunda travessa de caracóis e umas cervejas geladas, naturalmente, a ver o jogo Liverpool-Chelsea, quando a Hermenegilda me liga e, na sua voz de falsete, rígida e implacável, me diz: - «Pela barulheira já percebi que estás a ver o futebol. Há futebol todos os dias. Até no 1º de Maio. Este país está reduzido ao futebol, como se não houvesse mais nada importante.» Naquele momento, Drogba recebeu a bola na grande área e podia ter resolvido a eliminatória. Faltavam apenas dois minutos para o fim do jogo. Vamos ter prolongamento. E mais caracóis. (É um tradição antiga iniciar a época dos caracóis no 1º de Maio, apesar de gostar também de percebes a sair da cozedura). «Hermenegilda – respondi, depois de uns segundos de silêncio – pensei que estavas a ler um qualquer livro, que tinhas ido ao teatro, ao cinema, a um concerto ou à manifestação da CGTP» Ela sentiu a ironia na minha voz, e retorquiu: «Não te faças de sonso. Anteontem foi o Porto, ontem foi o Benfica. Parece que não há mais nada senão futebol. Esta paranóia do futebol serve apenas para distrair este povo pequenino que, alegremente, se afunda todos os dias». A conversa estava a ganhar forma – pensei.
O árbitro apitou. Vamos, então, ao prolongamento.
Os meus amigos entraram numa chinfrineira ensurdecedora. Ainda respondi: «Para quem detesta futebol andas muito informada. Um dia hás-de entender que o futebol é uma arte.» mas decidi despachar indelicadamente a Hermenegilda, como quem sacode um tapete: «Amanhã ligo-te, agora está aqui muito barulho».
Queria comentar o jogo, saborear até à última a minha cerveja, mas a Hermenegilda não me saía da cabeça: tem um percurso de vida ondulante. Frequentou a faculdade de letras, mas não acabou o curso – dedicou-se ao teatro. Foi sol de pouca dura, mas serviu de desculpa para os insucessos universitários. Nesses anos, de 68 a 74, a política não estava na lista das suas preferências. Mantinha com ela, nessa altura, conversas de horas e horas sobre a necessidade da luta contra a ditadura e a guerra colonial, mas ela não estava para aí virada. Queria acabar o curso tranquilamente e arranjar casamento. Chegou ao desplante de, em Novembro de 1969, furar uma greve universitária, quando os trabalhadores da Carris e da Lisnave enfrentavam a polícia de choque. E agora, quando eu estou a ver o jogo Liverpool-Chelsea, a Hermenegilda – aquela que eu conheço há quase cinquenta anos – vem me dizer que: «Esta paranóia do futebol serve apenas para distrair este povo pequenino que, alegremente, se afunda todos os dias». Oh Batista Bastos, onde é que ela estava antes do 25 de Abril?
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