||| Contra o fundamentalismo.
«Portugal é um país amável, de brandos costumes, como é habitual dizer-se. É uma das suas virtudes. Mas parece estar a tornar-se, aos poucos, num país fundamentalista. Sinal dos tempos. A recente lei antitabaco pode vir a ser um exemplo disso, mas não o único.
Não sou fumador. A não ser eventual, "se me dão", quando "o Rei faz anos", se estou particularmente bem-disposto, após um bom almoço com amigos fumadores...
Penso, aliás, que o tabaco é um mal, apesar do exemplo de Churchill, com o seu eterno charuto, de Simenon, inseparável do cachimbo, e de Camus ou de Humphrey Bogart, com os seus eternos cigarros...
Houve um tempo em que fumar era moda. As senhoras que o digam: começaram a fumar, habitualmente, no princípio do século XX. Hoje é uma actividade reprovável, senão um acto de malvadez. Passou-se do oitenta a zero, de um dia para o outro. Sem pedagogia, sem ouvir os interessados, fumadores activos e passivos, sem preparação prévia, dos estabelecimentos públicos, por decreto e por moda política da chamada "boa governação". Tenho dúvidas que resulte. Lembro-me do que sucedeu com o abolicionismo do álcool, em Chicago, nos anos trinta...
Depois criou-se a ASAE, organismo para fiscalização e protecção dos cidadãos, quanto aos artigos que consomem. Uma boa iniciativa. Claro, se houver bom senso e as intervenções públicas não se tornarem excessivas. Se a ASAE for vista como um organismo persecutório, que mete medo e estimula os bufos (um velho estigma nacional desde os tempos da Inquisição), então, não. Ao serviço das "grandes superfícies" com produtos estandardizados - sem gosto e inodoros - dos insuportáveis McDonald's, para atacar o pequeno comércio personalizado, também não. Seria acabar com as produções caseiras: o pão saloio, os bons frutos e legumes de produção individual, o mel, a flor do sal, o peixe pescado à linha e consumido no dia, em pequenas tascas, os doces locais... Acabar com tudo isso seria a ASAE, imprudentemente, destruir o que faz a nossa diferença e tornar Portugal, de norte a sul, um país apetecido e amado. Pelos estrangeiros sobretudo...»
Mário Soares , DN, 22.01.08