sexta-feira, 5 de janeiro de 2007

Abortemos, então. (3)

Hoje, Fernanda Câncio que, tal como eu, gosta de conquilhas, tirou o dia para mim, o que me deixa muito honrado e sensibilizado. A Fernanda é uma força da natureza e tem uma genica que lhe faz saltar o coração pela boca. E essa característica é, na maior parte das situações, uma grande virtude. Talvez, por isso, nem perde tempo a carregar em duas teclas ao mesmo tempo para provocar a maiúscula, transformando qualquer texto num arrazoado. É tudo a eito que se faz tarde. E escreve muito, o que lhe poupa muito tempo. (Como dizia o escritor: desculpe pela carta longa, mas não tive tempo de escrever uma curta.) A prosa da Fernanda é rápida e fulminante, como uma bala: deixa-me cansado só de a ler, apesar de, longe de mim, a considerar insensata, irreflectida ou coisa que o valha. Antes pelo contrário, sublinho. Mas vamos ao que interessa: não vou atender a diferenças semânticas, suposições infundadas, nem a interpretações que não correspondem a intenções que me são atribuídas e que em textos anteriores já linkados estão claras. (Só que parece terem sido lidos na diagonal e, ao ritmo fernandino, linha sim, linha não). Se não eliminasse o acessório teria de escrever um post igual aos quinze tomos da correspondência de Cícero, para citar de novo o escritor. A questão de fundo, da qual decorrem todas as outras, é a seguinte: eu não estou preocupado com as mulheres formadas, informadas e com dinheiro que reclamam o direito à disposição do seu corpo, incluindo a IVG. Este é um outro nível de direitos, um outro nível de discussão que muito boa gente, normalmente oriunda do Bloco de Esquerda, pretender confundir com a descriminalização do aborto, colocando-o ao mesmo nível da descriminalização das drogas leves. Por isso, insisto: este é um outro tema. Voto Sim no próximo referendo porque estou, sempre estive, preocupado com as mulheres que não têm formação, não têm informação, nem têm dinheiro. Não são engenheiras, advogadas, jornalistas, gestoras, empresárias, nem adolescentes filhas de “boas famílias”. São empregadas domésticas, empregadas rurais, empregadas de mesa, domésticas, desempregadas, operárias fabris e suas filhas adolescentes. Essas, sim, não tendo pretensões à disposição do seu corpo (muitas vezes são violadas no quadro do próprio matrimónio), nem reclamando esse direito, estão sujeitas à ignomínia de as criminalizarem, de as julgarem e de as prenderem por terem procurado resolver um problema grave que lhe surgiu do nada: uma gravidez que resulta das suas precárias condições de vida e que lhe vão agravar terrivelmente essas mesmas condições, para ela e para a família. Isto significa que a difícil decisão de uma mulher em abortar, em determinadas condições fixadas na lei, é uma decisão responsável e não se pode atrair a cultura da irresponsabilidade, tipo: esta noite vou dar o corpo ao manifesto e se alguma coisa correr mal tenho dez semanas para resolver o problema.A lei actual é ineficaz para resolver estas situações que devem ser resolvidas (já escrevi várias vezes) não porque os médicos fazem “interpretação de lei”, porque não é essa a sua função (ou então os meus muitos anos de Direito vão pela borda fora) mas porque diversas inércias ganharam espaço e a que o poder político e legislativo não é alheio.
Esta carta, na volta do correio, como me foi pedida, e que pretendi evitar (essa intenção foi interpretada como ignorância sobre o assunto, quando no fundo apenas se trata de ópticas diferentes (como diria Einstein: segundo a relatividade o tempo de colisão de uma pedra com o solo não será o mesmo para todos os observadores) já vai longa. Como muita coisa ainda ficou por dizer, chamemos-lhe então o primeiro capítulo. Até breve.
PS: travei batalhas políticas, em ditadura e em democracia, que a Fernanda não vai ter oportunidade de travar até ao fim da vida, a não ser que a invasão do Iraque, como marco do retrocesso do Ocidente, arraste a curto/médio prazo grandes convulsões. Neste caso, estou de consciência tranquila: andei de Lisboa a Madrid (aqui ouvi um dos mais empolgantes e emotivos discursos políticos que jamais os meus ouvidos tinham experimentado, feito por Almodovar nas Portas do Sol) em todas as manifestações contra a guerra no Iraque. E não me enganei.

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